Conheça a si mesmo para conhecer a Deus
O autoconhecimento e o relacionamento com Deus estão intimamente associados. Todos nós temos um grande desafio: abandonar o nosso “velho eu”, marcado pelo pecado, para vivermos a “nova vida”, centrada em Cristo. O resultado dessa equação é o que podemos denominar como a nossa verdadeira espiritualidade.
O apóstolo Paulo, com propriedade expressou o seguinte desafio: “livrem-se de sua antiga natureza e de seu velho modo de viver, corrompido pelos desejos impuros e pelo engano. Deixem que o Espírito renove seus pensamentos e atitudes e revistam-se de sua nova natureza, criada para ser verdadeiramente justa e santa como Deus.” (Efésios 4.22-24 – NVT)
Já no tempo dos pais da Igreja, havia uma grande preocupação quanto à qualidade desta vida espiritual. Agostinho escreveu em “Confissões” (400 d.C.): “como você pode se aproximar de Deus estando distante de si mesmo?” Uma de suas mais famosas orações dizia: “concede, Senhor que eu possa conhecer a mim mesmo para que possa conhecer a ti.”
Um monge trapista do século 13 escreveu: “ninguém pode conhecer Deus sem primeiro conhecer a si mesmo”. Teresa de Ávila escreveu no seu livro “O caminho da perfeição”: “quase todos os problemas na vida espiritual têm sua origem na falta de autoconhecimento”.
Um dos grandes teólogos da Reforma Protestante, João Calvino, escreveu na introdução de suas “Institutas da Religião Cristã” (1530): “a sabedoria verdadeira e substancial consiste quase substancialmente em duas coisas: o conhecimento de Deus e o conhecimento de si mesmo”.
A triste realidade da vida é que a maioria de nós morre sem saber exatamente quem é. No fundo vivemos mais a vida de alguém, ou a expectativa de alguém para nós e isso violenta a nossa identidade de quem somos e, acaba por interferir na nossa relação com o próximo e com Deus.
Desde criança somos ensinados a repreender nossos sentimentos: “engole o choro”, “homem não chora”, “aceita que doi menos”, etc. Aprendemos que não devemos confiar nos nossos sentimentos. Muitos crentes apelam tremendamente para a razão, esquecendo que todos nós temos dois hemisférios no cérebro: o racional e o emocional.
Daniel Goleman, autor de “Inteligência emocional”, definiu a palavra “emoção” como: “referência a um sentimento e seus pensamentos característicos, estados psicológico e biológico e âmbitos de propensões para agir”. em palavras mais simples, ele está dizendo que nossas ações, muitas vezes, são influenciadas não pela realidade, mas pela forma como percebemos a realidade.
Deus nos criou como seres emocionais, capazes de sentir e expressar raiva, tristeza, solidão, medo, prazer, amor, surpresa, desgosto, vergonha, etc. E precisamos compreender que quando negamos as nossas dores, nossas perdas e emoções, após um tempo, vamos nos tornar menos humanos. Com o tempo nos tornamos em “cascas humanas”, vazias, porém com faces sorridentes.
A Palavra nos revela um Deus que sente, que pensa, que se emociona, que é zeloso, que chora… por isso mesmo, um Deus capaz de nos compreender melhor que nós mesmos. Por isso mesmo, para vivermos uma espiritualidade saudável, e discipulamos saudavelmente outra pessoa, precisamos refletir sobre nossos sentimentos e, então corrigir os nossos sentimentos à luz da verdade da Palavra, sob o senhorio de Cristo Jesus.
Quando você tenta ignorar os seus sentimentos, o seu corpo irá somatizar – por isso, o corpo fala. E Deus nos fala através do nosso corpo, desde o famoso “nó na boca do estômago”, da tensão muscular, do tremor, da agitação, da liberação de adrenalina em nossa corrente sanguínea, da dor de cabeça e da súbita elevação da batida cardíaca, e até mesmo de uma canseira que só uma boa noite de sono pode restaurar.
Então, o grande segredo é conseguir manter o equilíbrio entre a nossa razão (intelecto) e os nossos sentimentos (emoção, coração). A questão não é seguir – de jeito nenhum os nossos sentimentos, pois o nosso coração é enganoso (Jeremias 17.9-10), mas reconhecê-los e submetê-los a Deus.
Consolações e desolações
Há dois movimentos internos na nossa mente: as “consolações” e as “desolações”. As consolações são todos aqueles sentimentos interiores que produzem vida e manifestam o fruto do Espírito (Gálatas 5.22-23). As desolações produzem morte: desordem interna, inquietação e turbulência espiritual. Até mesmo na parte espiritual, precisamos usar o lado racional do cérebro, como nos adverte o apóstolo João: “Não acrediteis em qualquer espírito, mas avaliai se os espíritos vêm de Deus” (1João 4.1).
Quando falhamos em nosso autoconhecimento, facilmente usamos máscaras – diante de Deus, diante do próximo e de nós mesmos. Com o tempo nos acostumamos tanto com as máscaras que por vezes fica difícil reconhecer quem de fato somos. Então, grande parte do trabalho do discipulado cristão, será o trabalho relacionado à nossa identidade que precisa ser construída conforme o padrão e o propósito de Deus.
A tentação de Cristo no deserto prefigura as três máscaras que satanás tenta fazer com que usemos em todo o tempo. A forma como Jesus enfrentou e respondeu a cada uma delas, também é a demonstração da escolha que precisamos fazer todos os dias para permanecermos fiéis à nossa nova identidade dada por Deus.
Abra a sua Bíblia e vamos ao texto bíblico:
1 Jesus, cheio do Espírito Santo, voltou do Jordão e foi levado pelo Espírito ao deserto, 2 onde, durante quarenta dias, foi tentado pelo diabo. Não comeu nada durante esses dias e, ao fim deles, teve fome. 3 O diabo lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, mande a esta pedra que se transforme em pão”. 4 Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Nem só de pão viverá o homem’ “. 5 O diabo o levou a um lugar alto e mostrou-lhe num relance todos os reinos do mundo. 6 E lhe disse: “Eu lhe darei toda a autoridade sobre eles e todo o seu esplendor, porque me foram dados e posso dá-los a quem eu quiser. 7 Então, se você me adorar, tudo será seu”. 8 Jesus respondeu: “Está escrito: ‘Adore o Senhor, o seu Deus e só a ele preste culto’”. 9 O diabo o levou a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo. 10 Pois está escrito: ‘Ele dará ordens a seus anjos a seu respeito, para lhe guardarem; 11 com as mãos eles os segurarão, para que você não tropece em alguma pedra”‘. 12 Jesus respondeu: “Dito está: ‘Não ponha à prova o Senhor, o seu Deus’”. 13 Tendo terminado todas essas tentações, o diabo o deixou até ocasião oportuna. (Lucas 4.1-13 – NVI)
Jesus não tinha problema com a sua identidade. Ele sabia bem quem era, o que o pai representava em sua vida terrena. No momento do batismo, o Espírito Santo desceu sobre ele como uma pomba, do céu ouviu-se uma voz onde o próprio Deus, o Pai, fala audivelmente a todos: “este é o meu filho amado, de quem me agrado” (Mateus 3.17). É como se Deus estivesse dizendo de Jesus, seu filho: “Eu amo você. Você é bom. É bom demais que você exista.
Estas palavras de afirmação são a base para a autocompreensão de Jesus. São nessas palavras que Jesus avalia a si mesmo. As mesmas palavras são para nós também hoje. Somente o amor de Deus em Cristo é capaz de sustentar o peso da nossa verdadeira identidade. Toda tentação contra nós, visa nos tirar do amor do Pai. Foi exatamente esta tática que satanás usou contra Jesus. Então…
Para se ver livre das artimanhas do inimigo, se livre desta tentação:
Tentação número 1: Eu sou o que eu faço (desempenho). v.3.
O diabo lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, mande a esta pedra que se transforme em pão”
Jesus tinha 30 anos, aparentemente era uma “pessoa qualquer”, ele não tinha ainda começado o seu ministério. Poderia até ser visto como um fracassado, ninguém acreditava nele. Que contribuição ele havia feito ao mundo? E, ainda por cima, estava esfomeado.
Nossa cultura mundana faz a mesma pergunta a nós todos os dias: O que você conseguiu? Como você demonstrou a sua utilidade? O que você faz?
Muitos de nós só nos consideramos úteis se estivermos fazendo alguma coisa que dê um resultado. quando não conseguimos, colocamos mais força, entramos em depressão, nos culpamos ou culpamos os outros pelas nossas situações difíceis ou desagradáveis. No fundo, toda busca por sucesso, neste mundo, tenta nos fazer buscar o nosso próprio valor fora do inesgotável amor de Deus por nós através de Cristo.
Para se ver livre das artimanhas do inimigo, se livre desta tentação:
Tentação número 2: Eu sou o que eu tenho (posse). v.6.
E lhe disse: “Eu lhe darei toda a autoridade sobre eles e todo o seu esplendor, porque me foram dados e posso dá-los a quem eu quiser.
Jesus foi levado a um lugar alto, para contemplar toda a glória e o poder da terra. Numa linguagem bem simples, o diabo lhe disse: “olhe ao seu redor, veja tudo que o mundo tem… você não tem nada”. “Você pensa que é alguém?”, “Como você irá sobreviver?” Você é um qualquer, um joão-ninguém”. O diabo estava manipulando emoções e sentimentos fortes e profundos como o medo e a fonte de segurança.
Nossa cultura mede o sucesso pelos produtos concretos. A gigantesca máquina de propaganda gasta mais de 15 bilhões de dólares por ano, para seduzir crianças, adolescentes, jovens, adultos e velhos para o consumo. A propaganda usa elementos de persuasão para nos convencer que nossa identidade está nas coisas que possuímos ou usamos.
Vivemos numa enorme escala comparativa e competitiva… Quem tem mais dinheiro? Quem é melhor? Quem ganha mais? Quem tem o corpo mais bonito? Quem tem melhor salário? Mais educação, mais prêmios, mais, mais, mais. A alma é insaciável!
Deixe-me contar uma história para você. O filme “Amadeus”, ganhou oito óscares em 1984 e retrata a vida de um homem chamado Antonio Salieri. Ele é o músico principal da Corte italiana; é o músico e compositor oficial do rei da Itália, mas sua alma foi profundamente destruída pela inveja, por não possuir o suficiente. O desejo dele é fazer a melhor música para Deus, ser famoso; e ele é muito bom nisso. O problema é que ele não era tão bom quanto Mozart, que era um gênio da sua época. Mozart possuía habilidade de compor mentalmente uma sinfonia. Aos 46 anos era já completamente surdo… mas ainda assim, compôs as suas melhores melodias.
Em vez de reconhecer o gênio e o talento únicos de Mozart e trazê-los para o seu mundo, Salieri fica zangado com Deus por ser tão injusto. Tragicamente ele acredita que Mozart é amado por Deus, enquanto ele não. Salieri não conseguiu se livrar desta tentação até o fim da sua vida.
Reconhecer que temos um Deus como Pai, que somos filhos amados e que esse amor de Deus por nós independe do que fazemos, é algo revolucionário. Nossa cultura vive na dependência de posses, elogios, e reconhecimento. Por isso, Jesus é o modelo perfeito de como podemos submeter a minha vontade ao amor do Pai como a verdadeira fonte de segurança para quem eu sou.
Para se ver livre das artimanhas do inimigo, se livre desta tentação:
Tentação número 3: Eu sou o que os outros pensam (popularidade). v.10.
O diabo o levou a Jerusalém, colocou-o na parte mais alta do templo e lhe disse: “Se você é o Filho de Deus, jogue-se daqui para baixo.
Satanás não brinca em serviço… Depois de Jesus ter resistido às duas primeiras tentações, ele apelou forte: “ se você é o filho de Deus”… O que o diabo queria era induzir Jesus a provar que realmente ele era o filho de Deus, para que as pessoas cressem nele. No fundo Jesus era – humanamente falando, até aquele momento, um desconhecido. As pessoas não tinham opinião formada sobre Jesus – e mesmo depois de algum tempo no ministério, parece que as pessoas não compreendiam muito bem quem era Jesus – Veja que Jesus pergunta isso aos seus próprios discípulos – Quem os homens dizem que eu sou? (Marcos 8,27-38).
A armadilha contra Jesus era induzí-lo a fazer algo tremendo para mostrar, para provar quem ele era. Na nossa cultura pós-moderna, dar importância demais ao que os outros pensam é muito comum. Somos todos carentes de atenção e da aprovação dos outros.
O que eu vou dizer ou não numa conversa? Qual escola os meus filhos vão frequentar? e por aí vai. Nossa autoimagem sobe a grandes alturas com um elogio e é devastada por uma crítica. Há uma grande liberdade quando descobrimos que não mais precisamos ser especiais aos olhos dos outros, pois sabemos que podemos ser amados e bons o bastante para o nosso Pai Celestial.
A tragédia desta tentação é que ela perdura por toda a nossa vida. Muitos permanecem presos na armadilha de viver uma vida fingida devido a uma preocupação doentia com o que as outras pessoas pensam.
Viver a vida dada por Deus envolve permanecer fiel ao verdadeiro ego, a nossa nova vida em Cristo, distinguindo e sabendo dizer não para todas as outras vozes que tentam nos tirar do chamado e da missão de Deus para nós.
Jesus estava completamente seguro do amor do Pai em si mesmo. Por isso ele pode responder aos questionamentos dos seus familiares ( eles questionam se ele está fora de si – Marcos 3.21), ele foi abandonado por seus discípulos, traído por Judas, porque não correspondeu ao que pensavam dele. As multidões queriam um messias político que os livrasse do poder do império romano. Os líderes religiosos da sua época não gostaram nem um pouco das rupturas ao seu sistema teológico, atribuindo o poder de Jesus aos demônios.
Conclusão
No entanto, Jesus conseguiu manter uma presença tranquila em meio a grande tensão. Jesus não era abnegado, ele não viveu como se apenas as outras pessoas tivessem importância. Ele conhecia o seu valor, sua importância. Ele teve amigos, pediu às pessoas para ajudá-lo. Ao mesmo tempo Jesus não foi egoísta; não viveu para si mesmo, como se ninguém mais contasse. Ele deu-nos sua vida e o fez por amor. Seu eu, emanando de um lugar de carinhosa e suficiente união com Deus Pai, era um ego verdadeiro, maduro e saudável.
A pressão sobre nós para vivermos uma vida que não seja a nossa também é grande. Poderosas forças hereditárias, culturais e espirituais agem contra nós. No entanto, viver fielmente ao nosso verdadeiro ego em Cristo representa uma das maiores tarefas do discipulado.
Autor: Elton Melo
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